Será o afecto da saudade, o consolo que nos resta, por tempos de união mística com o cosmos? Um consolo que guarda a memória do que se perdeu? Uma saudade do Oriente... Será este afecto marcante da mundividência portuguesa, o sinal de que houve um tempo em que o plano animal, vegetal, mineral coexistiam, numa harmonia única quebrada pela palavra e que se procura incessantemente? Muita da arte poderia ser perspectivada como uma resposta a este problema, a procura de uma re-união ou integração do cosmos e das suas forças consigo mesmo, a coincidência do macro com o micro.
A saudade é um afecto que para Pascoaes, por exemplo, é constitutivo da mundividência do "ser português", uma potência da geografia portuguesa associada à experiência de retorno. Tem-se saudade de um passado originário onde, sem cisões entre sujeitos e objectos, mundo e seus elementos, tudo vivia numa absoluta plenitude. Na saudade deseja-se replicar um mundo originário, que embora já não exista fisicamente pois está em perpétua luta e transformação, sublimou-se num espaço sem espaço geográfico, na dimensão espiritual e cósmica, no Oriente. Se houver retorno só será possível através de viagens espirituais, viagens nomádas. Este retorno torna-se possível com a superação dos ditames da dimensão actual, identitária, rígida e sem folia, através de uma abertura do humano ao inumano, ao campo de forças imanentes que cintilam por todo o cosmos e que coexistindo com a dimensão actual poderão lhe transformar. Para realizar tais viagens retorna-se ao corpo percepcionado como meio de actualizar novas forças, acompanhado por uma crença ontológica na Terra. Tudo está ligado e faz parte de um único plano cósmico e vital, é esse o nosso Destino. A recuperação da folia, marca da saudade, passa pela ligação entre o plano actual e a dimensão intensiva, comum a todos os seres, orgânicos e inorgânicos, passados, presentes e futuros.
Mas para quê retornar? Esta relação da saudade com o passado, a saudade de uma origem, não nos coloca alguns problemas? Associamo-la, proeminentemente, ao passado, a um tempo vivido que se imagina pleno, e transformamo-la num sentimento nostálgico. Saudade seria o desejo de algo pleno e passado. Mas esta associação entre saudade e nostalgia tão presente na cultura popular não advém de uma visão particular do passado? O passado perspectivado de modo linear como um depósito arqueológico, uma história às nossas costas e que só se pode recordar? O passado não é um fóssil separado do presente. O passado é vida e coexiste com o presente. O presente que passa e se torna passado mas o passado que esteve sempre ai e que confere sentido ao presente, a Memória da Terra. Não é o presente que faz o passado, mas o passado coexiste com o presente, isto é, há um ser do passado. Se a leitura do tempo passado não for em termos de (ir)reversibilidade – possibilidade ou impossibilidade de voltar atrás - mas em termos de actualização do tempo – trazer do passado singularidades -, a experiência temporal e a visão da saudade mudam radicalmente. Encarar o passado como algo (im)possível de reverter ou recuperar é ainda prendê-lo à história e a uma vontade de regressar a um estado originário, como se se quisesse voltar ao estado uterino. Assim perde-se a perspectiva do futuro. Por debaixo das histórias passadas cintilam forças singulares que permitiram que algo se tornasse histórico. O passado não é fóssil mas reserva de forças, intensidades, ideias, devires, afectos. O que seria a saudade em relação a esta visão do passado? A saudade seria assim uma capacidade de se ser afectado para procurar no passado forças a actualizar, para construir diferentes futuros, para se libertar da tirania do presente. Vista assim, ela seria a vontade de procurar na reserva do passado forças para pensar o presente e superá-lo, transformando-o e abrindo-o às múltiplas direcções do futuro. Um dos propósitos das viagens espirituais, pela geografia do espírito, cifra-se em ir às reservas mas voltar
carregado com novas forças e símbolos, para conferir maior sentido ao presente, para nos libertarmos da sua tirania e simultaneamente para amplificarmos as perspectivas quanto ao futuro, as vias de construção que podemos seguir. Na experiência da saudade não se retorna a uma experiência das vidas particulares, nem a um episódio histórico ou mítico, senão para neles destacar singularidades, acontecimentos. A experiência da saudade é cósmica e o retorno é a descoberta de como todas as singularidades imateriais trespassam-nos através da luz que compõe os corpos e que os faz pensar-sentir-devir com o cosmos em constante diferencia.
A saudade na cultura portuguesa tornou-se num marco vital de vontade de renovação de estruturas mentais, mas na nossa opinião essa renovação começará sempre a partir de viagens singulares, não pela apresentação de um programa comum. Encarar a saudade como um problema – como é que um povo pode ser melhor, fazer renascer as suas forças vitais e inconscientes? – coloca-nos no papel de criadores de soluções para a questão. A arte e a filosofia criam visões perturbadoras do presente para forçar o pensar sobre o nosso tempo, com o fim de recuperarmos forças vitais que ele bloqueia, com o fim de nos libertarmos da tirania do presente. Mas esta recuperação não corresponde a uma forma pré-estabelecida. Antes, assume várias formas, todas elas soluções parciais desse problema originário português. Podemos encarar a história da arte e do pensamento português como a série das diferentes respostas a esta Ideia-Problema da importância da recuperação da dimensão espiritual, sem vínculos a qualquer religião em particular. O ser português é múltiplo, não se trata de uma Raça determinada, mesmo que possamos localizar as suas raízes genéticas num povo galaico, mas o cruzamento de todas as raízes, o ser da Humanidade enquanto figura espiritual.
A saudade enquanto afecto relaciona-se com a procura de uma integração, cada vez mais rica e complexa entre os individuais e os processos do mundo. Por isso, está associada a uma vontade de renovação da realidade, de estruturas mentais e culturais, a uma vontade de ver o mundo pela primeira vez. A renovação do real consiste na recuperação da dimensão enigmática e misteriosa, da sensação de que há muito mais a descobrir e a criar, a recuperação de um novo olhar. Mas essa procura de uma completude envolve uma relação particular com o tempo. A saudade depende do passado, não o histórico e estratificado, mas o passado vital e virtual que coexiste com o presente. A saudade é um afecto, uma emoção. Etimologicamente, emoção vem de "movere", mover. A saudade é um sentimento que nos põe em movimento, faz-nos mover num duplo sentido: ir à reserva do passado e dele seleccionar imagens-forças-arquétipos que queremos actualizar, realizando tal movimento afectivo para enfrentar o presente e olhar para o horizonte problemático futuro com menos medo, mais energia e determinação. Por isso, este afecto foi vincado por vários artistas portugueses, conscientes da sua importância para o pensar que se faz sempre afectivamente.
Na experiência de retorno que a saudade implica, o que se quer redescobrir? É a saudade da criança que se foi? É a saudade de uma relação de mistério, enigmática, aberta, desejante, mágica com tudo? É saudade do excesso de vida transbordante, do caos misterioso do qual tudo é efectivamente possível? Porquê a importância da redescoberta das forças da infância? Não pensamos em um regresso às infâncias pessoais, nem num olhar nostálgico sobre recordações ou fantasmas passados. É um actualizar, um re-acordar de forças anímicas transversais a todos os planos e da capacidade de intuir, uma experiência intensiva, mágica. Tem-se saudade do que se perdeu, tem-se saudade porque se quer re-encontrar algo perdido. Mas poder-se-á ter saudade do que ainda não se experienciou? Saudade como desejo por um futuro? Quer se tenha saudade do que se
perde, quer se tenha saudade do que ainda não se é, a saudade está ligada a um ideal, a um foco passado ou futuro, a um horizonte. Num caso, cria-se para se recordar, para trazer à vida de novo o que ecoa na memória. Noutro caso, cria-se para fazer nascer pela primeira vez esse ideal, essa imagem, esse desejo. Quer-se dar de novo sentido ao presente através do passado ou dar sentido ao presente através do que se procura.
A saudade é um afecto ligado à experiência do tempo e do espaço. Saudade de uma força no passado e saudade de um outro futuro. Saudade da terra que se deixou em busca de novos encontros para melhores soluções. É proeminentemente positiva e rica pois o tempo passado não está "lá", algures depositado, o passado está sempre aqui coexistindo no presente. O passado não é histórico mas intensivo, rico de forças, ideias, imagens, sensações, virtualidades, tal como o futuro é rico em incertezas e direcções possíveis.
Quem é afectado pela saudade, quem se deixa contaminar por este afecto impessoal? O estrangeiro viajante, o poeta, a criança, três figuras da saudade. O estrangeiro viajante é o que se desterritorializa, o que parte de um território seguro e se aventura por novos caminhos pela Terra. O poeta é o que se recorda da infância da Terra, e toda a sua poesia é um esforço de retorno à Casa. O retorno é um duplo movimento de libertação das peles mortas, das estruturas condicionantes e a procura de novas géneses, de novos estados nascentes. A criança ou a infância são a imagem da inocência, da singularidade, da autenticidade, da intensidade, da potência da livre criação e expressão. As três figuras ligam-se: o viajante torna-se poeta quando retorna ao seu território para cantar as suas histórias, e o poeta viaja pela Casa que contempla; o poeta torna-se criança do Cosmos mas a criança é a própria Casa. As três figuras são imagens do ser afectado directamente pelo cosmos, da forte percepção da inter-conexão de tudo, da consciência da possibilidade de actualizar forças que de tudo emana.
Não falamos só das viagens físicas e concretas mas essencialmente das viagens espirituais, as viagens nómadas, em que imobilizado sai-se de si e percorre-se os tempos e os espaços. Há uma geografia interna como a terra e as suas paisagens. Desertos com oásis, árticos rudes, florestas tropicais, autoestradas sem fim, praias remotas, riachos e lagos, oceanos profundos, etc. Cada geografia com os seus sentidos: uma terra e os seus sons, os seus aromas, os seus sabores, as suas visões, as suas ideias, as suas gentes. É de tudo isso que se sente saudade.
Será a saudade um afecto triste ou alegre? Ela tem nuances mas acreditamos ser um afecto alegre embora pareça estar ligado à tristeza, à nostalgia, à depressão. Estas são as leituras psicanalíticas, as visões negativas de uma potência criativa e alegre. Porque temos antes de mais saudades do por vir, do futuro que imaginamos. A saudade é paradoxal: deseja-se o que ainda não se tem mas esse desejo mais do que falta é a nossa vontade por isso a saudade liga-nos aos projectos, ao futuro. O maior perigo que se pode cometer é a ligação da saudade à falta: desejo ter aquilo que me falta, aquilo que já tive. Mesmo a saudade de um passado não é a de um passado concreto mas de uma sensação, de uma intensidade que esse passado nos deixou, é a sensação que queremos voltar a repetir e nisso não há qualquer impossibilidade. Uma obra de arte, uma visão, um toque, um aroma, uma palavra, são alguns dos vários elementos que nos podem despertar tal sensação.
Por isso, a saudade não se relaciona ou nos confronta com o irreversível. A saudade é diferente da nostalgia (dor espiritual). É-se nostálgico por causa da experiência da irreversibilidade do tempo. Experienciar a saudade é actualizar o tempo, uma criação do
vivido ou recuperação do perdido: o que se perdeu pode ser recuperado em algo novo.
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Hitesh
Julho de 2006
Hitesh
Julho de 2006
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