Sombra...

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A sombra (do latim umbra) implica a ausência local de luz, estando associada à fidelidade do contorno e à inseparabilidade da figura que a produz. Na medida em que não pode ser linearmente definida, é qualificada de relativa (em relação à luz e à figura), associando-se à verdade, à ilusão e ao reino metafísico das trevas, dos espíritos e da morte. Esta polissemia de sentidos comprova que a sombra não se encontra dependente da luminosidade (não representa apenas uma privação de luz) mas produz uma figura com características distintas e autónomas. De um ponto de vista dialéctico, a sombra relaciona-se com os princípios de separação, discernimento, diferenciação e localização espacial. Deste modo, adquire o valor de signo decifrável de uma realidade primária, simbolizando a silhueta pela qual a figura se dá a conhecer (Jacob, 1990).



A sombra, o aspecto yin do pensamento chinês (em oposição à luz, o aspecto yang), encontra-se associada ao mito da Criação: “No princípio Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas” (Génesis, 1:1). Platão (427-347 a.C.), na célebre Alegoria da Caverna (A República, VII, 514a-517a), adverte os homens a afastarem-se do conhecimento primitivo e ilusório, concedido pela contemplação das sombras, para um conhecimento iluminado pelo Sol e pela Verdade. Note-se, a este respeito, a associação entre a ausência de sombra na pintura bizantina e a significação teológica e política da frontalidade solar.



Plínio, o Velho (23-79), refere que a Arte Pictórica nasceu quando a sombra humana foi circunscrita pela primeira vez por uma linha (História Natural, XXXV, 15). O mesmo pensador menciona que a Escultura teve uma origem semelhante: uma rapariga traçou na parede a sombra do seu apaixonado, que se iria ausentar em breve. O seu pai realçou a zona do rosto com barro, de modo a que a filha mantivesse uma recordação fidedigna do objecto do seu amor (Plínio, Ibidem, XXXV, 43).



A sombra como duplo do corpo detém um valor simbólico na Literatura, em particular quando alcança, de forma miraculosa, a sua autonomia. Na obra de A. Chamisso (1781-1838) A Maravilhosa História de Peter Schlemihl (1814), o protagonista vende a sua sombra ao Diabo ou, no conto de H. C. Andersen (1805-1875), A Sombra (1847) destrói aquele que a produz, assumindo a sua posição. Todavia, a sombra também pode propiciar ocasiões afortunadas, como na obra Lai da Sombra (cc. 1202-1204/1217-1222), atribuída a J. Renart (n.? - m.?), na qual um cavaleiro comove a sua apaixonada pelo engrandecimento da sombra desta (a sombra é equiparada, neste caso, ao reflexo na água de um poço). Particularize-se também a obra Ensaios sobre Fisionomia (1776) de J. C. Lavater (1741-1801), onde o perfil da sombra do rosto humano (e não o rosto humano) é considerado o mais perfeito reflexo da alma (Stoichita, 1997).



O facto da sombra desenhar a forma dos objectos tridimensionais concede-lhe um papel fundamental na Escultura e na Arquitectura, principalmente pela importância que estas artes atribuem ao jogo entre a luz e a sombra (Sourian, 1990). A representação das sombras no Desenho e na Pintura permite uma maior autenticidade, facilitando ao observador a compreensão do volume e da profundidade dos corpos representados através do jogo do claro-escuro. Nesta medida, o recurso à sombra marca o interesse pela sugestão do relevo, o desenvolvimento da perspectiva e a apologia do realismo da aparência. Alguns artistas, principalmente a partir do século XVII, ocuparam grande parte das suas telas com jogos de sombras, sendo Rembrandt (1606-1669) um caso exemplar. Na Pintura Impressionista e Moderna em geral as tendências alteraram-se, sendo de destacar a luz viva em detrimento dos tons obscuros e a substituição das sombras por contrastes cromáticos.



A sombra assume-se como um importante leitmotiv na teoria de C. G. Jung (1875-1961), simbolizando quatro fenómenos distintos e complementares: a personificação onírica dos complexos constitutivos do Inconsciente Pessoal, um Arquétipo do Inconsciente Colectivo, a etapa preliminar do Processo de Individuação e a fonte radical do Mal, integrado na Esfera Divina. De acordo com o autor, a sombra representa o substrato inferior da personalidade, o conjunto de todos os elementos psíquicos (pessoais e colectivos) que, devido à sua incompatibilidade com a forma de vida eleita pela consciência, não foram plenamente vivenciados (Jung, 1971). Estes conteúdos formam uma personalidade parcial e autónoma com tendências opostas ao inconsciente. Ora, a sombra não é apenas uma privatio lucis mas uma realidade independente e activa que tem de ser consciencializada, sob pena do sujeito ser por ela subjugado. Assim como um órgão físico se insurge quando não é correctamente alimentado, também a sombra se revolta quando é negligenciada: “qualquer indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada na sua vida consciente, mais espessa e escura se torna” (Jung, XI, § 131).



A descida ao abismo surge, desta forma, como o prelúdio indispensável a uma ascensão espiritual (per tenebras ad lucem). Ou seja, o confronto com a sombra representa a conditio sine qua non preliminar para uma aproximação do ‘Si’ (Selbst), o centro total da personalidade e a meta fulcral da vida anímica. A sombra, encarada inicialmente de uma forma negativa adquire, após a sua plena integração na consciência, um sentido mais amplo. José, no Génesis (50:20), refere aos seus irmãos o seguinte: “o mal que tínheis intenção de fazer-me, o desígnio de Deus o transformou em bem”. A obra de J. Conrad (1857-1924) Coração das Trevas (1902) ilustra, de uma forma exemplar, a consciência, confronto, aceitação e integração da sombra junguiana.



De Tomás Baêna



Bibliografia:
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- CHAMISSO, A., Peter Schlemihls windersame geschichte. Paris: Aubier, 1966.

- CONRAD, J. (1902). Heart of darkness and other tales. Oxford/New York: Oxford University Press, 2002.

- GORGULHO, G. S., STORNIOLO, I, & ANDERSON, A. F. (dir.), A Bíblia de Jerusalém. S. Paulo: Edições Paulinas, 1985.

- JACOB, A. (dir.), Encyclopédie philosophique universelle. Paris: PUF, 1990.

- JUNG, C. G., Gesammelte werke. Ed. de F. Riklin et al., Zürich/Stuttgart: Rascher Verlag, 1960 e segs.

- JUNG, C. G., Erinnerungen, träume, gedanken. Zürich/Düsseldorf: Walter Verlag, 1971.

- LAVATER, J. C., Essays on physiognomy. London: Vernor & Hood, 1806 (tradução de T. Holcroft).

- LECOY, F., Jean Renart: Le lai de l’ombre. Paris: Champion, 1979.

- OWENS, L. (dir.), Complete Hans Christian Andersen fairytales. New York: Gramercy, 1993.

- PLATÃO, A república. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976 (tradução de M. H. Rocha Pereira).

- PLINY, the Elder, Natural history. Cambridge/London: Loeb Classical Library, 1952 (tradução de H. Rackman).

- SOURIAN, A. (dir.), Vocabulaire d’esthétique. Paris: PUF, 1990.

- STOICHITA, V. I., A short history of the shadow. London: Reaktion Books, 1997.

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