Back at work

Voltei hoje ao trabalho. A manhã custou um bocadinho...

Para que não me esqueça dos pormenores

O J nasceu numa terça-feira. O tempo estava feio, frio e chuvoso. Gostava muito de poder dizer que o dia estava lindo e cheio de sol mas assim não foi.
Era suposto nascer só na quinta-feira mas decidiu-se que seria na terça-feira visto que já estava no hospital desde domingo, com cólicas renais que tinham começado no sábado de madrugada. Eu a pensar que me vinha embora tal como me tinham dito e afinal em vez de ouvir "até quinta-feira" ouvi "bom dia menina, avise em casa que vai ser hoje". Bem, dia 1 de Abril, dia dos enganos - muita gente achou que era partida. E assim foi, 15:20 entrei no bloco pelo meu pé, já com uma sensação estranha (a Dra Cristina tinha mandado acrescentar ocitocina no meu soro por volta das 15:00). Logo à entrada deitei-me na maca e fui levada para dentro. Estava aparentemente muito calma, o que é estranho. Já dentro da sala de operações, tive de passar para a mesa o que foi muito difícil por causa do peso da barriga e quando estava a preparar-me para a epidural comecei com muitas dores. A epidural doeu menos do que a por o cateter. E depois é a sensação de ter um cobertor muito quentinho em cima das pernas. Logo a seguir discurso do anestesista (dr Joaquim) por causa das minhas alergias aos antibióticos. Começo a tremer de forma um bocado descontrolada sem razão aparente - afinal não estava assim tão calma. Entretanto começam enquanto eu vou imaginando o que se deve estar a passar com base nos vídeos que estupidamente me lembrei de ver. As enfermeiras que lá estão reclamam do serviço e das outras equipas enquanto eu canto, ou tento cantar a pedra filosofal para me acalmar. "já se veem as pernas" e passado um bocadinho às 15:41 nasce o J. O J a chorar parecia um bebé já crescido e chorou muito pouquinho e quando mo mostraram, fez-me um pouco de confusão ele ser tão bonito, estava à espera de um pequeno com a cara apertada, vermelha, sujinha. Mas não, ele era lindo e perfeito.

Pensamentos soltos

1 | A palavra mãe assusta-me. A palavra filho também. Talvez por isso eu só me trate por mamã ...

2 | Acho que só me descobri verdadeiramente depois de ser mãe ... Tudo o que compõe o meu corpo passou a ser coisas diferentes ... um colo, um embalo, um abraço ... tudo passou a ser muito melhor ...

Passa rápido

É qualquer coisa de fantástico o que o tempo e tudo o que ele traz consigo nos vai fazendo... nos vai dando, somando, multiplicando... e tudo em nós vai crescendo até nos sair em musica pela garganta, qual nuvem pequenina carregada de coisas boas...

Ressurreição | Paulo Borges

Gemem nos infernos da terra desolada
As árvores secas negras e queimadas
Assim gememos nós
Defuntos infantes de uma Terra Pura
Errantes no limbo da saudade
Do que nunca foi nem pode ser
Mas instante cresce e vem
Com o irreprimível fulgor do inadiável
As suas raízes são as nossas
Febris veias sinuosas
Afundando-se e alastrando silenciosas
Nas auroras negras que há por dentro das coisas
A revolver o íntimo do mundo em insónias e espantos
Espectros lentos que sobem à tona
Chamas surdas que crepitam e crescem
A lavrar o íntimo da imensidão
Que tarda em amanhecer
Ó turba que adias o despertar
Da rumorejante noite do haver
Sepultos no âmago dos mundos
Alucinados assomamos aos berços aos afagos e aos rostos
Ao riso e às lágrimas
Da faminta aurora do existir
Aos sepulcros caiados do que parece
Ao delírio do nascer e morrer
E assim rondamos na roda do desejo
Que a própria boca outra sempre beija
E o alucinado devir sem fim renova
Mas o que agora, ó Irmãos, vem
Por entre este murmurante e tépido renovar do mundo
Por entre este amoroso halo que às coisas nimba
Por entre estas ridentes e floridas núpcias de tudo
Por entre estas danças cantos coroas e grinaldas
É outra coisa
É a vera verdade prima Primavera do despertar que nunca conheceu sono
O eterno vivente na orla sem margens do existir
O que ressuma da ânsia da terra queimada
E do silente gemido das vidas e das coisas
O que cresce do fundo de o não haver
E em cada um de nós se faz alento e carne
No súbito espanto de tudo
O que agora se celebra e canta, ó Irmãos
É mistério maior que o haver mundo
Mistério maior que o haver
Tal qual maior que todo o mistério
É o jamais termos sido possíveis
É o jamais ter havido alguma coisa
E sequer a ideia de haver
O que agora se celebra e canta, ó Irmãos
É a eterna e instante Ressurreição
De nada jamais ter início
E assim, mas de outro modo
Oblíquo, fulgurante e maravilhoso
Tudo ser afinal e sempre possível
O que agora se celebra e canta é este prodígio natural
De nada ser um Esta revoada de corpos
Que, ígneas pombas bravas, do imo de cada poro
Em adamantinos ímpetos se nos elevam
E súbito se transmudam em miríades de vidas várias loucas e impossíveis
A multiplicarem-se ébrias das infinitas possibilidades que há nas infinitas possibilidades
que há nas infinitas possibilidades que há no esplendoroso vazio de tudo
Ó turbamulta cascata vertigem abismo
De tudo quanto passado presente futuro
Se viveu vive viverá
E aqui agora simultaneamente se vive imagina pensa sente
De tudo quanto sem acontecer ocorre
De tudo o que se agita raiva e revolve
Em dor júbilo medo esperança
No fundo sem fundo
Da terrível e fantástica inconsciência disso
É esse o grande tumulto que aqui agora
Neste e em todos os cantos
Neste e em todos os poemas
Dos fundos da terra queimada desponta
O grande clamor das árvores mirradas retorcidas sedentas
O grande clamor dos mortos desatentos esquecidos
Rompendo eras mundos infernos
em rebentos viços e seivas novas
Das árvores nossos corpos amotinados insubmissos amantes
Estendendo grandes ramos
Vigorosos braços pulsantes
Em filigrana ao espaço cingidos
Nossos corpos uns aos outros abraçados enxertados fundidos
Multiplicados em folhas flores frutos
Espontaneamente jovens e maduros
Explosivos de tão plenos tão frementes tão puros
E neles todos os nossos sonhos as nossas alucinações a nossa loucura
Todas as vidas todas as mortes
Todas as lágrimas todas as fezes todo o sangue
Todo o furor toda a impotência
Toda a fome toda a sede todo o cio
Todos os encontros todas as perdas todas as despedidas
Todo o ranger de dentes todo o tactear às escuras
Todas as alegrias todos os pasmos todos os júbilos
Todas as esperanças todos os desenganos
Todo o vício toda a virtude
Todos os crimes todas as expiações
Todos os infernos todos os mundos todos os céus todos os paraísos
Tudo isso e o seu rotundo nada
O seu imenso vazio a sua prodigiosa evanescência
Em cada fruto brilhante e pleno que da miríade de nossos ramos pende
Imperioso e súbito se avoluma até eclipsar o espaço
E neste mesmo instante em torrencial vertigem de luz explode
Branco
Vermelho
Negro
.........................................
Agora pode enfim haver mundo
Sonho eternamente livre de o ser
Todos os seres infantes sem nome sem pais sem pátria sem casa
Todos os fenómenos danças cantos hinos jogos
Todos os sons poesia muda
Todos os pensamentos invisíveis asas
Omnipresentes no infinito do espaço que não há
Todas as coisas
Ressurreição de as haver
Todas as coisas
Ressurreição
De a haver

Paulo Borges